CARLOS FREDERICO COELHO NOGUEIRA, procurador de Justiça aposentado (São Paulo), advogado criminal e professor de Direito Penal e Processo Penal no CPC-SP
A Inquisição espanhola sempre mereceu estudos à parte, não só por sua longevidade como, ainda, pelas características de autonomia em relação à Santa Sé e de íntima ligação com o poder secular.
Igreja e Estado Espanhol caminhavam juntos desde 587 DC, ano em que o rei visigodo Recaredo se converteu do arianismo para o cristianismo e a religião passou a ser encarada como fator de unidade nacional, "maxime" diante da invasão da península ibérica pelos mouros e pelos sarracenos, bem como diante do sentimento dispersivo e autonomista de regiões como os reinos de Lião, Aragão, Navarra , Sevilha, Castela, Granada e Valência e, ainda, da profusão da população judaica, que desde a diáspora (séc. I DC) se instalara em todo o território espanhol. O lema "cujus regio, hujus religio" (um só reino, uma só religião) imperava desde então, estabelecendo férrea parceria entre os órgãos eclesiásticos e o poder temporal, a ponto de os monarcas visigóticos terem submetido vários de seus códigos legislativos à aprovação de Concílios, como ocorreu, "verbi gratia", com o Fuero Juzgo do séc. X DC, aprovado pelo Concílio de Toledo.
De longa data veio, "et pour cause", o instituto do padroado, pelo qual os membros do clero eram designados pelo soberano, às vezes com o placet dos bispos e outras vezes até mesmo sem ele.
Durante a Idade Média, a Inquisição não teve atuação expressiva em terras espanholas, que, por sua própria localização peninsular, separadas do continente europeu pela cordilheira dos Pireneus e arrodeadas pelos mares, não sofreram de forma ingente a influência e a penetração de movimentos heréticos como o dos cátaros (puros ou perfeitos, originários da Macedônia e partidários do neomaniqueísmo herdado de Mani), o dos albigenses (provenientes de Albi, no Languedoc francês), o dos valdenses (fundados por Valdo, na Itália) e o dos fraticelli (dissidência radical da Ordem dos Frades Franciscanos).
O rei Pedro II de Aragão, em 1197, reiterou o edito que seu pai Afonso II houvera baixado contra os inimigos da Igreja, declarando os hereges fora-da-lei e expulsando-os de suas terras. Pela primeira vez, aliás, surgiu em terras de Espanha, em 1198, a menção à pena de morte pelo fogo (vivicombúrio) para os membros de seitas heréticas, após o Domingo da Paixão de 22 de março daquele ano. O reino de Aragão, por sua proximidade com a fronteira francesa, foi o mais assediado por incursões heréticas, já que o Languedoc estava praticamente dominado pelos albigenses, propugnadores de uma postura de culto exclusivamente interior, sem rituais externos e com total rejeição dos sacramentos católicos e de qualquer intervenção das cerimônias eclesiásticas.
Desde 1226, o rei de Aragão, Jaime I, o Conquistador, preocupado com o recrudescimento das heresias, repôs em vigor os editos de 1197 e 1198, a pedido do cardeal francês Saint-Ange. Em 1232, o papa Gregório IX queixou-se junto ao arcebispo de Tarragona que os clérigos locais não se interessavam muito na repressão aos cátaros e quejandos, tendo-se tornado letra morta os editos respectivos. Por uma bula de 26 de maio de 1232, o aludido pontífice encarregou o arcebispo de Tarragona de instituir tribunais inquisitoriais, como órgãos eclesiásticos de exceção, que funcionassem paralelamente aos tribunais ordinários da Igreja. Foi esse o germe da Inquisição espanhola.
Jaime I, no ano seguinte, promulgou novo edito contra os albigenses, iniciando perseguições realizadas por padres que se socorriam do auxílio de leigos recrutados dentre os boni viri (homens de bem). Esse edito foi de imediato confirmado por Gregório IX, que, pela vez primeira, colocou em cena os Frades Pregadores, membros da ordem dos Dominicanos, fundada por Domingos de Gusmão, encarregando-os das atividades inquisitoriais na Espanha.
Em 1235, foi elaborado um regimento inquisitorial pelo dominicano Ramón de Peñaforte, a mando do pontífice. Peñaforte, por sinal, fora o inspirador das bulas papais que levaram à instalação da Inquisição em terras peninsulares. Ramón de Peñaforte, posteriormente canonizado (em 1601), catalão de nascimento, foi estudante e professor na universidade de Bologna, tendo chegado à posição de superior geral da Ordem dos Dominicanos. Chefiou várias incursões missionárias em meio aos mouros e aos judeus e sua importância no meio eclesiástico e político espanhol foi tanta que, a seu funeral, em 1275, compareceram em pessoa os reis de Aragão e de Castela. Foi ele, aliás, o principal inspirador e organizador das famosas Decretais de Gregório IX, provavelmente a primeira codificação sistemática do Direito Canônico medieval, também conhecidas como Liber Extra.
A perseguição contra os cátaros, em Aragão, malgrado os esforços papais, não seguiu, contudo, a contento, tendo sido necessário que Gregório IX relembrasse, em 1238, ao rei e aos bispos, o dever de perseguir os hereges de acordo com as normas estabelecidas pela Santa Sé.
Somente no viscondado de Castelbon, em Aragão, a atividade inquisitorial foi mais severa, sob o comando de Guilherme de Montgrin, que condenou cerca de 50 hereges e chegou ao cúmulo de exumar 18 cadáveres de albigenses para que seus ossos fossem queimados em efígie, seguindo, aliás, antiga tradição inquisitiva, que infligia penas post mortem.
No resto da Espanha, as atividades anti-heréticas foram quase inexistentes durante o séc. XIII. A Inquisição de Navarra foi organizada em 1238, sob a supervisão do dominicano Pedro de Leodegaria. O rei Afonso X, o Sábio, no seu Fuero Real de 1255 e na Lei das Sete Partidas, de 1276, ao mesmo tempo em que reproduziu muito da legislação estatuída por Gregório IX estabeleceu alguns pontos importantes: o objetivo principal da perseguição aos hereges devia ser levá-los à abjuração (renegação da heresia, que os tornava penitentes e os eximia de castigos mais severos), determinando que somente fossem entregues ao carrasco se teimosamente se recusassem a abjurar (o que os tornava impenitentes, sujeitos a suplícios e à morte). Os condenados ficariam sujeitos ao confisco de seus bens e à perda de quaisquer cargos honoríficos, com perpétua inabilitação para funções públicas de relevo, como as de magistrados, bailios etc.
Paralelamente às perseguições anti-heréticas, contudo, foram gradativamente crescendo, nos meios eclesiásticos , as preocupações relativas ao crescimento das populações moçárabes ou mudéjares (mouras) e das populações judaicas, sendo de notar que, em 1290, eram mais de 500.000 os judeus habitantes da Espanha, muitos deles incrustados em postos políticos e financeiros de monta (Afonso X chegou a cercar-se de hebreus e árabes chefiados por Aben Raghel de Toledo, que compunham uma academia de jurisconsultos, médicos, astrônomos etc.).
No séc. XIV, o maior expoente da Inquisição espanhola foi o dominicano Nicolau Eymerich , Grande Inquisidor de Aragão, que, entre os anos de 1320 e 1339, elaborou o conhecido Manual dos Inquisidores (Directorium Inquisitorum), do qual destacamos alguns trechos deveras expressivos:
"Não deverá decretar-se a tortura sem primeiro ter inutilmente usado todos os meios de descobrir a verdade. Boas maneiras, esperteza, exortações através de outras pessoas bem-intencionadas, a reflexão, as incomodidades da prisão, podem ser o bastante para conseguir dos réus a confissão da sua falta. Os tormentos não são mesmo um método mais seguro para conseguir a verdade. Há homens fracos que, à primeira dor, logo confessam crimes que não cometeram, enquanto outros, teimosos e fortes, são capazes de suportar os maiores tormentos. Há homens que, tendo sido já sido submetidos à tortura, a suportam com constância, porque se lhes distendem logo os membros e eles resistem fortemente; e há outros que, graças a sortilégios, se tornam a si mesmos insensíveis e seriam capazes de morrer no suplício, sem nada confessar".
"Quando começou a estabelecer-se a Inquisição, não eram os inquisidores os que aplicavam a tortura aos acusados, com medo de incorrerem em irregularidades. Esse cuidado incumbia aos juízes laicos, conforme a bula Ad Extirpanda, do papa Inocêncio IV, na qual esse Pontífice determina que devem os magistrados obrigar, com torturas, os hereges ('esses assassinos de almas, esses ladrões da fé cristã e dos sacramentos de Deus') a confessar seus crimes e a acusar outros hereges, seus cúmplices".
"É por certo um costume louvável aplicar a tortura aos criminosos, mas reprovo veementemente esses juízes sanguinários que, por quererem vangloriar-se, inventam tormentos de tal modo cruéis que os acusados morrem durante a tortura ou acabam por perder alguns de seus membros".
"Não deverão tornar-se públicos os nomes das testemunhas, nem dá-los a conhecer ao acusado, se disso advier algum dano para os acusadores e só muito raramente é que tal dano não acontece. Efetivamente, se o acusado não é de temer por causa de suas riquezas, nobreza ou família, é de temer muitas vezes a sua maldade, ou a de seus cúmplices, os quais, sendo às vezes determinadas pessoas e nada tendo a perder, se tornam perigosos para as testemunhas".
O último parágrafo destacado revela uma das características marcantes da Inquisição espanhola: o sigilo do processo, que muitas vezes era imposto ao próprio acusado, sendo de frisar que o costume de ocultar do réu os nomes das testemunhas somente veio a ser criticado e abolido, naquele país, por Frei Tomás de Torquemada, em suas Instruções, mais adiante analisadas. Outra característica local a ser salientada é a dos autos-de-fé, cerimônias abertas ao público e "festivas", nas quais eram pronunciadas as sentenças contra os hereges, os apóstatas, os bruxos e os feiticeiros, sob intensa manifestação popular. Nesses eventos, os hereges penitentes abjuravam publicamente as heresias, outros eram fustigados ou torturados sob a instigação do populacho e os condenados à morte eram ali mesmo executados (na fogueira, em geral), estrangulando-se os relapsos (reincidentes) que abjuravam perante o carrasco, antes de queimar seus cadáveres.
No século XV chegou a auge a perseguição aos mouros e aos judeus, os primeiros acuados cada vez em redutos como Granada, estando a Espanha prestes a conseguir a meta nacional que ficou conhecida como Reconquista.Muitos moçárabes, com receio da expulsão, converteram-se ao cristianismo, aceitando o batismo e sendo chamados de mouriscos. Também os judeus aderiram a tal prática, passando a cognominar-se marranos.
Em 1478, os "reis católicos" (Fernando de Aragão e Isabel de Castela), empenhados na Reconquista, pediram ao papa Sisto IV o reavivamento da Inquisição, por ele concedido na bula Exigit Sincerae Devotionis Affectus, na qual os soberanos foram autorizados a designar três ou ao menos dois bispos ou homens experientes, que fossem padres seculares, com pelo menos 40 anos de idade, para os processos e julgamentos inquisitoriais.
Eis alguns trechos da aludida bula papal: "Tomamos conhecimento que em diferentes cidades dos vossos reinos, são numerosos aqueles que, por sua livre vontade, tendo sido regenerados em Jesus Cristo pelas águas sagradas do batismo, voltaram secretamente às práticas das leis e costumes religiosos da superstição judaica... incorrendo nas penalidades pronunciadas contra os autores da heresia pelas constituições do papa Bonifácio VIII. Por causa dos crimes desses homens, e da tolerância da Santa Sé em relação a eles, a guerra civil, homicídios e numerosos males afligem os vossos reinos ... queremos, pois, atender à vossa petição, e aplicar os remédios apropriados para aliviar os males que vós assinalais. Autorizamo-vos a designar três ou pelo menos dois bispos, ou homens provados, que sejam padres seculares, de ordem mendicante ou não, com quarenta anos de idade, pelo menos, de elevada consciência e vida exemplar, mestres ou bacharelados em teologia, ou doutores e licenciados em direito canônico, cuidadosamente examinados e escolhidos, tementes a Deus, e que vós considerais dignos de serem nomeados para o tempo presente, em cada cidade ou diocese dos ditos reinos, segundo as necessidades ... Além disso, em relação a todos os acusados de crime contra a fé, e dos que os ajudam ou os favorecem, concedemos a esses homens os direitos particulares e as jurisdições segundo o que a lei e o costume lhes atribuem aos ordinários e aos inquisidores da heresia".
Nasceu aí o caráter misto e autônomo da Inquisição espanhola, na qual o poder civil podia designar os inquisidores, sem prévia anuência da Santa Sé, tendo Roma, inclusive, renunciado, posteriormente, também à prerrogativa de homologar os nomes designados. Os dois primeiros inquisidores designados pelos monarcas foram os freis dominicanos Miguel Murillo e Juan de San Martin, que se estabeleceram em Sevilha, onde a aglomeração judaica era de monta. Houve verdadeiro pânico entre os "conversos" (denominação genérica dos mouriscos e dos marranos), que, corrompendo os grandes senhores feudais, refugiavam-se em seus castelos a troco de numerário. Por uma proclamação de 2 de janeiro de 1481, os dois inquisidores ordenaram aos grandes senhores que entregassem os perseguidos, sob pena de excomunhão, enchendo-se as prisões de árabes e de judeus batizados. Os marranos insurgiram-se e decidiram assassinar os inquisidores, mas a conjuração foi abortada por delações, com posterior confisco dos bens dos sublevados e sua condenação à vivicombustão. No dia 6 de fevereiro de 1481, vários condenados foram queimados na primeira fogueira da chamada "Moderna Inquisição Espanhola".
A partir daí, recrudesceu a atividade inquisitorial em todo o país, sendo adotadas principalmente as seguintes características:
1ª) O poder civil deixou de ser o "braço secular", mero executor das condenações eclesiásticas, passando a ser coadjuvante e co-partícipe dos trabalhos clericais;
2ª) Os juízes inquisidores passaram a ser escolhidos, pelo soberano, entre membros do clero secular, já que os das ordens regulares (como os dominicanos e os franciscanos) eram estreitamente ligados ao papa;
3ª) Foi criada uma Segunda Instância na própria Espanha, o "Conselho da Suprema e Geral Inquisição", integrado por seis membros nomeados pelo rei e presidido pelo GRANDE INQUISIDOR, ou Inquisidor-Geral, vinculado diretamente ao monarca;
4ª) Os judeus e os mouros foram instados a se batizarem , sob pena de exílio, para, ao depois, não mais na condição de "infiéis" (pagãos) , mas na de cristãos, ficarem sob a jurisdição dos tribunais inquisitoriais;
5ª) Reforçou-se o aspecto político da Inquisição, aliada ao poder civil na incessante luta conta hereges, apóstatas, judeus e mouros, e também na tarefa ingente de preservar a unidade do país contra setores separatistas que resistiam - alguns dos quais até hoje...- à unificação nacional.
Muitas cidades, acostumadas aos seus privilégios, secularmente conferidos pelos soberanos através dos "fueros" (correspondentes aos "forais" lusitanos), resistiam à intervenção de estranhos em seus costumes e na autonomia local. Houve revoltas em várias regiões, como Navarra, Sevilha, Zaragoza, Granada, Toledo, Barcelona e Valência, contra as imposições dos inquisidores, muitos dos quais foram assassinados em atentados.
Em 31 de janeiro de 1482, diante desses fatos, Sisto IV, em bula, protestou com veemência, ameaçando cassar o poder designatório dos reis, ele próprio nomeando oito inquisidores para Castela -entre os quais frei Tomás de Torquemada- , bem como exigindo que os recursos decorrentes dos confiscos de bens fossem encaminhados a Roma e que os nomes das testemunhas fossem comunicados aos acusados.
Diante da ameaça de sisma, por parte dos reis católicos, o papa recuou, tendo em vista a imensa importância da Espanha para a propagação do cristianismo. O aludido pontífice acabou, inclusive, por concordar com a jurisdição de segundo grau da "Suprema", apesar de preservar, para a Santa Sé, a prerrogativa de receber as queixas de quem quer que se considerasse oprimido ou injustiçado.
Em outubro de 1483, surgiu no cenário inquisitorial espanhol sua mais conhecida, odiada, temida e expressiva figura: o dominicano Tomás, natural de Torquemada, localidade que lhe forneceu o sobrenome que é quase sinônimo de Inquisição, de arbítrio e de atrocidade fanática.Foi ele nomeado pelos reis católicos (dos quais era confessor) como Inquisidor-Geral de Castela, Aragão, Leão, Catalunha e Valência, com o beneplácito do Sumo Pontífice.
Torquemada, prior do convento de Santa Cruz em Segóvia, acumulou tantos poderes que, por anos, foi considerado apenas abaixo da autoridade real, à qual se vinculara, mais do que à de Roma.
W. Th. WALSH, em seu livro "Personajes de la Inquisición"(Madri, 1948, págs. 218/219), mencionado por G. TESTAS e J. TESTAS em "A Inquisição" , Difusão Européia do Livro, 1968, págs. 71/72, nos dá um quadro expressivo sobre a figura de Torquemada:
"Muito estrito no que respeita aos outros, ele era-o muito mais consigo mesmo. Nunca comia carne, dormia sobre uma tábua lisa e não usava nenhuma roupa sobre a pele. Permanecia incorruptível, inacessível a qualquer lisonja ou promessa... O dinheiro para ele tinha tão pouco valor que gastava em obras piedosas e caridosas somas consideráveis, que provinham de gratificações de Isabel e de confiscos... Atirando-se ao trabalho com fria energia, Torquemada começou por reorganizar e reformar os tribunais do Santo Ofício. Demitiu os inquisidores que tinham dado provas de parcialidade ou de rigor inúteis ou que, pelo seu caráter, eram ineptos para as funções. Em geral, tornou o processo mais suave e parece ter-se esforçado de todas as maneiras para evitar os erros e os abusos cometidos pelos primeiros inquisidores. A atenção escrupulosa com que acolhia os apelos, mesmo de condenados pobres e obscuros, as numerosas ordens que deu para revogar as confiscações abusivas ou prestar socorros aos filhos dos acusados, testemunharam o seu desejo sincero de ser indulgente e justo. Por outro lado, não podemos considerar hipócritas as cartas de Torquemada, nas quais recomendava misericórdia e justiça, pois esses documentos, destinados a ficar estritamente confidenciais, permaneceram, com efeito, ignorados de todos durante séculos. Estendeu as atribuições do Santo Ofício a numerosos crimes ou delitos como a 'heresia implícita'.
Assim, a Inquisição punia os bígamos, ladrões de igrejas, os blasfemadores, os padres que se casavam , os sedutores de mulheres, os fabricantes de filtros de amor, os carcereiros que violavam nas prisões as mulheres inculpadas, os pretensos santos e místicos, e, de um modo geral, todos os que especulavam com a credulidade pública".
Devem-se a Torquemada as Instruções, que redigiu de 1484 a 1498, nas quais foi fixado o regulamento organizacional e procedimental da Inquisição espanhola. Posteriormente, essas Instruções viriam a ser completadas pelos sucessores de Frei Torquemada, Deza (1500) e Cisneros (1516), tendo sido efetuada uma compilação geral delas por Alonso Manrique, com uma consolidação final por Fernando Valdez, em 1561.
Em linhas gerais, o processo inquisitorial passou a ser mais célere e sumário (concorrendo com o arrastado procedimento da justiça comum), com obrigatoriedade de comunicação do inteiro teor da acusação ao acusado, bem como dos nomes das testemunhas, além de se ter incentivado a defesa por meio de advogados, inclusive pagando-se-os se o réu fosse pobre. Conta-se que, durante a supervisão geral de Torquemada, cerca de 100.000 pessoas foram processadas na Espanha, das quais 2.000 morreram na fogueira, em um período de 14 anos.
A Inquisição na Espanha - Conclusão
Durante a "era Torquemada", em 31 de março de 1492, Fernando de Aragão e Isabel de Castela assinaram um decreto expulsando os judeus do território espanhol, devendo eles deixar no país seu ouro e seu dinheiro. Escaparam apenas da punição os judeus batizados ("marranos").
No séc. XVI, os tribunais inquisitoriais fixos eram 14, em território espanhol, e as cidades que possuíam inquisidores eram: Toledo, Sevilha, Valadolid, Granada, Córdoba, Múrcia, Llerena, Cuenca, San Tiago de Compostela (para a qual muitos condenados peregrinavam em cumprimento de pena), Logroño, Zaragoza, Barcelona, Santa Cruz de Tenerife, Valência e Maiorca.
A tortura foi utilizada em larga escala, quando o acusado caísse em contradições ou se negasse a confessar desde logo suas heresias.
Tendo em vista a antiga parêmica Ecclesia abhorrat sanguinem ("A Igreja tem horror ao sangue"), os suplícios não podiam ostentar caráter cruento. Um dos mais utilizados era o da água, ao lado do "polé" e dos "cordeles" (cordas progressivamente apertadas em torno dos braços e das coxas).
A preparação para a tortura era terrível: o condenado era convidado a confessar, mediante súplicas, ameaças e até pela demonstração do funcionamento dos instrumentos de suplício.
Se confessasse durante o tormento, seguia-se a condenação. Se suportasse as dores, poderia ser absolvido, comprometendo-se, todavia, a nada contar a terceiros sobre o sofrimento por que passara.
Como a tortura somente podia ser infligida uma vez, os inquisidores recorriam ao subterfúgio do "adiamento" da sessão, para "prosseguimento" posterior.
As penas eram: jejuns obrigatórios, peregrinações, proibições de permanência em certos lugares, práticas religiosas obrigatórias, prisão (inclusive domiciliar), utilização do sambenito (hábito em forma de saco, de cores amarela e vermelha, que se enfiava pela cabeça), as galeras, as flagelações e a morte pelo fogo.
Os hereges relapsos (reincidentes) eram lançados diretamente ao fogo. Os reconciliados (que abjuravam a heresia na hora da morte) eram primeiramente estrangulados pelo carrasco, e seus corpos eram jogados já sem vida na fogueira.
A maioria dos autos-de-fé, entre os quais os mais grandiosos, era realizada na Plaza Mayor, de Madrid.
Ainda no séc. XVI, foram instituídos os crimes de judaísmo e de maometanismo, tendo ocorrido intensa perseguição aos adeptos da Reforma protestante, a qual, por sinal, não logrou sucesso em terra espanhola graças à Inquisição.
Entre os reformistas, os mais visados foram os erasmitas, adeptos de Erasmo de Rotterdam, os luteranos e os intimistas, que renegavam qualquer tipo de culto externo, desprezavam as riquezas da Igreja e pregavam o colóquio íntimo e direto com Deus, sem intermediários.
Também os místicos foram duramente reprimidos, como os alumbrados (iluminados), que se diziam ofuscados por luz interior, e os dejados por amor de Diós ou quietistas, que passavam horas e até mesmo dias em imóvel contemplação divina. As beatas, que viviam de esmolas e consideravam-se portadoras de dons proféticos, também foram alvo constante dos processos inquisitoriais
Até entre os jesuítas foram encontrados místicos, em 1579, em Estremadura.
Uma beata condenada por orgias libidinosas, Eugenia de la Torre, foi queimada em Toledo.
Nem mesmo Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, escapou das suspeitas da Inquisição, que o processou e acabou absolvendo-o . As suspeitas em questão dirigiram-se aos seus Exercícios Espirituais, que alguns inquisidores temiam que pudessem levar padres e freiras a retiros e reclusões desprovidos de qualquer culto externo.
Santa Tereza de Ávila foi igualmente processada e absolvida, sob acusação de iluminismo.
Por volta de 1510, um monge franciscano, Melchor, de Ocaña, que anteriormente houvera profetizado a conversão total dos mouros, a queda dos tronos, a convulsão total da cristandade e a transferência do papado para Jerusalém, considerando-se eleito por Deus, obedecendo a uma ordem do Senhor, dirigiu-se à posteriormente canonizada Joana de la Cruz, convidando-a a com ele gerar um filho que seria um novo Messias. Joana denunciou-o ao inquisidor geral, Cisneros, que o processou e o condenou à fogueira.
Em 1558, a Infanta Joana inaugurou sinistra novidade, em conluio com a Igreja: a censura, instituída pela "Sanção Pragmática", que listou obras proibidas e vedou sua aquisição por católicos, sob pena de condenação à morte.
Uma das vítimas dessa censura, aliás, foi o frei Luís de Leon, professor da Universidade de Salamanca, que, acusado de assumir em aula posições iluministas - pretendia rever e publicar a "Bíblia de Vatable", que fora proibida pelo inquisidor-geral Valdez - , foi preso e ficou no cárcere por 5 anos (de 1572 a 1576). Quando reassumiu sua cátedra, começou a primeira aula dizendo: "Como dizíamos ontem..."
Em 1559, para impressionar o povo, o próprio rei Felipe II compareceu em pessoa a um auto-de-fé, no qual dezenas de condenados foram executados perante cerca de 200.000 pessoas, em Madrid.
Em fins do séc. XVI, destacou-se a figura sinistra do Duque de Alba, que, em seu "Tribunal de Sangue", torturou e matou muita gente com o "placet" das autoridades eclesiásticas.
No séc. XVII prosseguiu a luta da Inquisição, desta vez mais dirigida contra os protestantes. Novas figuras criminosas foram criadas, como a sodomia, a bestialidade, o homossexualismo, a necrofilia e a mancebia, todas de competência do Tribunal do Santo Ofício e quase todas passíveis de morte pelo fogo.
No séc. XVIII o iluminismo anticlerical que se alastrou pela Europa e acabou eclodindo na Revolução Francesa foi severamente punido pela Inquisição espanhola, mas sua influência foi, a pouco e pouco, aliada à revolução industrial , à ascensão da burguesia e aos movimentos liberais, fazendo minguar os poderes, o prestígio e a atuação do Santo Ofício, cada vez mais considerado um anacronismo insuportável e injustificável.
Entre 1744 e 1808, apenas 14 réus foram condenados à morte pelos tribunais inquisitoriais espanhóis.
A Inquisição espanhola resistiu, porém, até mesmo a Napoleão, que, em dezembro de 1808, aboliu formalmente o Santo Ofício, após a ocupação, sem que ela, porém, deixasse de existir na prática.
Em 22 de janeiro de 1813, as Cortes de Cádiz votaram a abolição do Santo Ofício. Fernando VII, porém, ao retomar o trono da Espanha, restabeleceu a Inquisição, em 1820.
O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição somente veio a ser definitivamente eliminado em Espanha por decreto de Maria Cristina, em 1834.
OBRAS CONSULTADAS
JAMES A . BRUNDAGE, "Medieval Canon Law", ed. Longman, London, 1995.
PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES e ANA MARIA BABETTE BAJER FERNANDES, "Aspectos Jurídico-Penais da Tortura", ed. Ciência Jurídica, Belo Horizonte, 1996.
A . TESTAS e J. TESTAS, "A Inquisição", ed. Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1968.
EDWARD MANN, "La Inquisición - Lo que fue y lo que hizo", ed. Humanitas, Barcelona, 1991.
JOÃO BERNARDINO GONZAGA, "A Inquisição em seu Mundo", ed. Saraiva, 1993.
NICOLAU EYMERICH, "Manual dos Inquisidores", ed. Rosa dos Tempos, 1993, trad. de Maria José Lopes da Silva.
ADMA MUHANA, "Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição", ed. Unesp, São Paulo, 1995.
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