(*)Dr. George Felipe de Lima Dantas - Consultor em Segurança Pública
Já faz mais de um século que o francês Paul Tupinard (1889) referiu pela primeira vez a expressão “criminologia”. Ela é uma disciplina acadêmica bastante especial nos dias de hoje, enquanto estudo científico do crime, criminosos e questões conexas, temas que constituem graves problemas sociais do nosso tempo. Entenda-se, enquanto “disciplina cientifica“, um instrumento de produção de conhecimento que supostamente resguarda a validade (ou legitimidade) e confiabilidade (ou permanência) das conclusões dos estudos assim realizados. E é exatamente essa “cientificidade“ do conhecimento produzido pela criminologia que faz dela tão especial e necessária... O tratamento não-cientifico, ou vulgar, dado aos temas ou objetos de estudo da criminologia pelo “homem comum“, freqüentemente vai permeado de equívocos próprios da impressão e opinião de cada um, sendo consolidados numa suposta “lógica” do senso comum. Isso muitas vezes pode chegar ao limite da mistificação coletiva, celebrada no folclore popular. A exemplo, imagens assim destorcidas podem produzir uma “identidade folclórica“ do crime com “pretos, pobres e prostitutas“...
Muita gente boa, aqui mesmo no Distrito Federal, expressa forte opinião pessoal em relação a importantes questões criminológicas da atualidade, sem que tais opiniões tenham sido testadas como sendo realmente as mais efetivas, eficientes e eficazes no combate ao crime e violência. Esse é o caso, por exemplo, daqueles que advogam a fixação de uma nova idade de responsabilização penal. É comum encontrar pessoas que sustentam que adolescentes, e ate mesmo crianças, devam estar sujeitos ao mesmo tipo de legislação penal a que estão submetidos os maiores de dezoito anos. Outra questão polêmica, a da aplicação da pena de morte, tal qual a controvérsia da idade penal mobiliza fortes opiniões a favor e contra. É evidente que tanto um grupo ideológico quanto o outro que lhe opõe, acreditam que sua opinião esteja de acordo com medidas que desestimularão o crime, ou mesmo farão com que ele deixe de ocorrer. Infelizmente, as convicções pessoais freqüentemente estão equivocadas em relação ao fenômeno da violência e da criminalidade, o que faz com que seja necessária uma abordagem científica, ou “criminológica” dessas mesmas questões.
Nos Estados Unidos da América (EUA), por exemplo, já ficou comprovado cientificamente que a pena de morte não inibiu a ocorrência dos delitos para os quais sua aplicação foi prevista em lei. Mas há quem sustente, ainda assim, que a pena de morte seja necessária nos EUA... Assim, opiniões via de regra são muito pouco válidas e confiáveis, mormente em assuntos sociais complexos como é o caso do fenômeno da criminalidade. O valor social da criminologia, enquanto disciplina científica, está em seu potencial de desmistificar opiniões pessoais e preconceitos em questões relativas ao crime. O conhecimento criminológico, instrumentado pelo método científico e não pela opinião, pode realmente apontar as políticas mais efetivas para promoção de segurança pública e contenção da criminalidade.
Entre os vários mitos que cercam o fenômeno da criminalidade, um dos mais disseminados é o de que a maioria dos crimes traduz-se em atos de violência interpessoal. Isso definitivamente não é verdadeiro. Os crimes mais comuns são aqueles contra o patrimônio, ou contra a propriedade, furtos principalmente, cuja quantidade é algumas vezes maior que a soma de todos os delitos violentos interpessoais, caso dos homicídios, estupros, lesões corporais, etc... De maneira geral, os chamados “delitos contra a pessoa”, em verdade, representam apenas de 10 a 15% de todos os delitos cometidos num dado espaço de tempo e num determinado lugar.
Um outro equívoco bastante comum é imaginar que a criminalidade mais séria e perniciosa esteja associada com o fenômeno da pobreza (conceito distinto da desigualdade social...). Desmistificar tal suposição implica, em primeiro lugar, admitir que a maioria dos crimes com grande repercussão social, ou “que saem na mídia”, são realmente aqueles que ocorrem entre indivíduos das classes mais populares. A mídia que cobre assuntos policiais, por exemplo, tem um foco pré-estabelecido na delinqüência das periferias e bairros populares. Mas serão eles, de fato, os “mais sérios”? – Que dizer, por exemplo, do potencial de “dano social” dos delitos de um único “criminoso do colarinho branco”? Quantos criminosos ‘pé de chinelo’ produzirão, todos juntos, o “rombo espetacular” das ações criminosas de um único fraudador do INSS?
Um outro mito bastante interessante é o de que os autores de crimes violentos interpessoais sejam “estranhos e bandidos perigosos”. Ao contrário da crença mitológica, a maioria deles não é constituída por “predadores perigosos” esperando por suas vítimas em esquinas escuras. Eles são, sim, em sua grande maioria, pessoas essencialmente normais, ademais de geralmente serem conhecidos de suas vítimas. Farta evidência de pesquisa dá conta de que aproximadamente 80% dos estupros são cometidos por indivíduos bem próximos das vítimas, parentes inclusive. O mesmo acontece em casos de delitos sexuais contra menores e de diferentes ações delituosas perpetradas contra idosos.
Um outro importante tema da atualidade, e que também guarda um mito, é o de que o direito da cidadania possuir armas não influencia a criminalidade violenta. “Arma só não pode ser comprada por bandido”, afirmam alguns... Ora, de acordo com o Sexto Relatório Global sobre Crime e Justiça da Organização das Nações Unidas, o Brasil estaria em primeiro lugar mundial em “mortes causadas por ferimentos fatais produzidos por armas de fogo”, sendo também o primeiro colocado global em “mortes por armas de fogo”. Como se não bastasse, fica em segundo lugar apenas para a África do Sul em “vítimas de homicídio” por arma de fogo”. Outras pesquisas apontam que a utilidade principal das armas (estatisticamente considerando...) é o cometimento de crimes. O número de ocorrências em que armas servem como instrumentos de autodefesa de seus proprietários legítimos é consideravelmente menor do que a cifra que representa as vezes em que são utilizadas criminosamente. Um outro dado de pesquisa, também da maior importância, aponta que aproximadamente 70% dos homicídios acontecem por armas de fogo, grande parte delas furtadas.
Um outro tema mitológico é o de que “endurecendo com a criminalidade”, inclusive com a aplicação de mais e maiores penas, o problema do crime e da violência possa ser resolvido. Isso também pode ser um equivoco de percepção...
De cada 100 mil norte-americanos, cerca de 9 cometeram homicídios e 555 estão encarcerados por alguma razão. Considerando os mesmos parâmetros, existem dois canadenses homicidas para 100 mil habitantes, com 116 deles cumprindo penas diversas. Já na Austrália, o índice de homicídios é de 1,9, menor ainda que o dos canadenses, enquanto o quociente de encarceramento é de 91. Cotejando os dados dos três paises, fica visível que “prender mais” não seja, por si só, um fator que produza menores índices de criminalidade violenta, caso dos homicídios. No caso norte-americano, parece exatamente o contrário...
Varias pesquisas apontam que, em lugar de penas maiores e mais severas, a criminalidade deva ser controlada com investimentos nas comunidades, incluindo moradia e preparação dos jovens para o mercado de trabalho (treinamento e educação), sem esquecer programas de fortalecimento da familia e outros grupos sociais primários. A criminalidade estaria assim relacionada com a desintegração das comunidades, desarticulação da família e desigualdade de oportunidades em locais de rápida expansão urbana desordenada. Victor Kapeller, tratando da “mitologia do crime e da justiça criminal”, aponta que é clara a preponderância de evidências de que a desigualdade econômica, desemprego e subemprego sejam fatores estimulantes do crime na sociedade norte-americana. Aspectos como esses, aponta Kapeller, seriam os mais negligenciados e mascarados no estabelecimento das políticas de controle criminal daquele país. Segundo aquele mesmo autor, “deve ficar amplamente claro que nossas prioridades (dos norte-americanos) estão no lugar errado e nossa resposta punitiva ao crime é um verdadeiro desastre social”.
No Distrito Federal também existem alguns exemplos que contrariam a mitologia...
Assim é que o Lago Sul (Região Administrativa XVI do Distrito Federal), congregando a população de maior nível socioeconômico da região, com renda per capita média de quase 17 salários mínimos (CODEPLAN/1997), detém o menor índice atual de homicídios do DF (Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social/janeiro de 2003), com apenas um caso registrado em 2002 (índice de 3,61 homicídios por 100 mil habitantes). A tranqüilidade pública do Lago Sul também pode ficar explicada pela sua baixa concentração populacional, já que segundo o IBGE (contagem de 1996, Censo 2000 e projeções da SEDUH-GDF, SUPIN, DIPOL e GEPOP) a localidade possuía apenas 27.739 moradores em 2002. A população local está numa fase de contração, com o Lago Sul possuindo hoje uma taxa negativa de crescimento demográfico de -0,71%.
Inversamente ao que ocorre em relação ao próspero Lago Sul (que diminuiu sua população no biênio 2001-2002), o Paranoá (Região Administrativa VII), com a menor renda per capita do Distrito Federal (1,07 salários mínimos), ficou com o maior índice de homicídios de 2002, 29 casos registrados (48,94 por 100 mil habitantes). Sintomaticamente, o Paranoá possui 59.256 habitantes, portanto mais que o dobro da população do Lago Sul. Enquanto o Lago perdeu população no período 2001-2002 (passando de 27.937 para 27.739 habitantes), por conta de sua taxa de crescimento negativo de -0,71%, já o Paranoá teve a população aumentada (de 57.038 para 59.256 moradores), função de uma taxa de crescimento demográfico de 3,89%.
É através de números, índices e indicadores, rigorosamente compilados a partir de estatísticas sociais interpretadas num contexto estrutural, dinâmico e complexo, que tanto os homicídios do Lago Sul quanto os do Paranoá podem e devem ser interpretados. Entre o espalhafato do mito popular bizarro, e a verdade e certeza da moderna criminologia, ficam as opiniões pessoais, muitas vezes equivocadamente forjadas segundo ideologias, traumas, preconceitos e os mitos de cada um. Pior ainda, quando o mito fica plasmado pelo consenso. Nem pobre, nem negro, tampouco gente ”mal encarada” terão de ser criminosos... Os ricos, brancos e belos, tampouco serão inocentes, a priori, apenas por isso...
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